Páginas

domingo, 11 de março de 2012

Sonha, D ô r A .


Dôra era uma mulher de muitos sonhos.
Nasceu em uma família republicana e cresceu se sentindo uma bastarda.
Esse era um de seus inúmeros devaneios: ter sido adotada e na realidade se chamar Rita.
Hayworth, de preferência. Mas só Rita já lhe faria mais feliz.
Dôra tinha um som muito fechado e para baixo, enquanto Rita era mais agudo e sonoro segundo seus conceitos de audição.
Era fã da história "O patinho feio", pois invariavelmente assumia o papel do protagonista. Essa ficção era seu passaporte de liberdade para outros devaneios e fantasias.
Como tantas outras mulheres de sua geração casou-se cedo com um partido bom determinado pelos próprios pais.
Aceitou o enlace de bom grado, porém a velha pulga questionadora insistia em mordê-la.
Vez ou outra. Sempre de modo súbito e sempre quando parava de sonhar.
Levou essa pulga consigo, durante anos a fio.
Mas não lhe dava muito ouvidos. Logo ela que era tão ligada aos tons, graves, agudos e sons.
Por muito tempo, deixou a coitada falando sozinha e a cada filho que paria, achava que a bichinha tomaria outros rumos bem longe de suas orelhas.
A danada da pulga nunca lhe largou e foi ela tempos mais tarde que a fez largar os vícios do contentamento, da vidinha bem organizada e por último do marido bom partido.
Partiu sem deixar notícias e sem discussões com seu então gestor de idéias, pensamentos e sonho algum.
Foi nessa época que determinou que precisava de um  novo papel.
Não causou-lhe espanto quando finalmente optou pelo ofício dos fonemas .
Com tantos sons, tons, agudos e graves na cabeça, soou-lhe muito bem a ideia de  usá-los para ganhar a vida e prover o sustento da prole.
Sim. Porque a essa altura o bom partido nem conseguia ouvir falar de Dôra.
Ouvia todos aqueles professores, profissionais e sintetizadores de vozes com entusiamo e orgulho de si própria. Era um mundo novo repleto de informações que nem sequer imaginava em seus mais mirabolantes  devaneios e quimeras.
Novos sonhos surgiram e a boa parte deles conseguiu dar vida.
Em parte sentia-se igual ao Gepetto do Pinóquio: mentira e verdade são só uma questão de ponto de vista ou de realização.
Com ferramentas amoladas partiu para as obras e construiu vários palácios e barraquinhos que habitavam sua imaginação.
Mas se você pensa que esse é um relato sobre uma vencedora, afine seus ouvidos, pois é uma história sobre sonhadores.
Dôra que insistia em querer se chamar Rita,deu asas a vários deles. Alguns possíveis e outros tantos impossíveis.
Fato é que acumulou na bagagem muitas novas e inimagináveis experiências.
Contudo, a pulga amestrada, irriquieta e visionária nunca deixou de lhe acompanhar.
Anos se passaram. Mas eram tantos os sonhos, que ano nenhum a fazia passar por cima da origem de tudo aquilo.
E não havia ano que ousasse lhe conferir idade ou peso.
Aquela imagem de menina era sua essência  acompanhadora - D ô r a!  Sufixo (Dôra era apelido de um nome bem comprido!) bem apropriado, não? R i t a ser-lhe-ia mais difícil.
Havia se viciado então em imaginar, pensar e também em mesóclises.
Denominava-se ela própria um desses fenômenos do português: metia -se no meio e fazia a elegante diferença. Uma raridade nos dias atuais.
Dôra só não conseguia dimensionar o quanto era fora da linha mediana dos gráficos estatísticos e quase que diariamente colocava um sonho de lado em prol de sua educação com base republicana.
O pensamento "racional"  que classificava toda aquela intensa atividade como inconsequente, insistia em bater à sua porta e fazer-lhe pagar uma injusta conta que pagamos toda vez que não consumimos o que pedimos.
Para Dôra, cujo remédio natural era a utopia, qualquer movimentação gratuita  e sem tramas tonava-se  motivo de um novo machucado e ferida.
Decidiu-se então por tatuar no próprio antebraço a palavra mesóclise, para que nunca mais se esquecesse de que sonhos são somente um pequeno pronome no meio do caminho de quem ousa sonhar. E por serem raros os sonhadores, são considerados fenômenos...
Escreveu em árabe para que ninguém mais aparecesse querendo discutir ou questionar seu verdadeiro sustento.





Nenhum comentário: