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sábado, 4 de fevereiro de 2012

A Tarde

Cresceu assistindo à "Bela da Tarde" na TV aberta mesmo.
Dado o seu ano de nascimento, nenhum canal de televisão possuía o privilégio de ser fechado em seu país de origem.
Fato é que a película, um tanto ousada para as crianças de sua idade, ficou em sua mente por anos a fio.
Ficou para sempre.
E toda tarde fazia seu café para pensar melhor.
Aquele cheiro marcante da bebida marcava o início de um novo período de trabalho.
Era seu luxo permitido. Sua pausa na pauta pré organizada.
Sempre foi assim e sempre haveria de ser.
Certa terça feira de verão enquanto montava a cafeteira, se deu conta da ausência da matéria prima básica, essencial, primordial, crucial. Aquela que nunca poderia nem deveria faltar.
Questionou-se com muita raiva e indignação como havia permitido tal displicência.
Era de tarde, tarde de verão e muito tarde para pressões sem solução.
Começou a buscar pelo cômodo da pia e fogão substitutos possíveis para liberar o seu pensamento vespertino.
Como o vício é cego, abriu e fechou os mesmos armários e geladeira repetidas vezes.
Já cansada de tentar conseguir o ausente e imaginário pó preto, eis que encara então, uma espumante muito gelada e esquecida.
Nesse momento crucial no qual encontra-se alguém que não estava na sua procura, ou a mente se abre para novos desfechos e inicia-se uma história inédita, ou ela se fecha em seus hábitos cotidianos e nos afogamos no choro da  perda do que poderia ser.
Ora? Verão, espumante, pensamento, tarde, gelada, terça.
Os encaixes pareciam tão sonoros e harmoniosos, que a priori, essa sequência não apresentava nenhum absurdo, ameaça ou risco.
Mesmo assim tentou fugir.
Melhor seria um chá mesmo.
Mais óbvio, tranquilo e normal.
Preparou a água quente, a caneca e as ervas. Nunca fazia chá com menos de três tipos diferentes.
Mas aquela espumante...
Aquele breve encontro... e todo o conforto de seus hábitos arruinados.
Apagou o fogo e estourou a rolha.
Pegou a taça e guardou a caneca.
Em plena terça feira permitia-se um novo luxo com borbulhas no nariz.
Ali. Sozinha. Sem comemorações, nem réveillons.
Pegou a garrafa e voltou a trabalhar como se fosse tudo muito usual e comum. Como se estivesse com seu laptop a bordo de seu iate - próprio, alugado, emprestado ou roubado - na Riviera Francesa.
Melhor se fosse roubado, pensou.
A vantagem dos espumantes é que eles são jovens, leves, bem humorados e sem compromisso.
E se era para fazer pensar melhor, descortinava-se ali um item essencial para a clarificação do pensamento.
Tentou então evoluir nas questões pausadas antes da pausa para a bebida, mas a tarde já ia longe e seu novo muso só lhe fornecia forças e inspirações para liberações.
O gás carbônico em plena terça havia acordado alguma energia adormecida pela cafeína.
Pensou em dançar, escrever, desenhar, pintar e até mesmo bordar - esqueceu a última, pois não seria capaz de contar pontos.
Mas naquela pausa "extra ordinária" da pauta de terça feira teve mesmo vontade de sonhar.
Sem nexo, culpa, encaixes ou projeções.
Um sonho de verdade, se é que me entende.
Porque a vantagem dos sonhos de verdade é que eles podem ser jovens, leves, bem humorados e sem compromisso.
Quanto à ela, nem sei se algum dia depois daquele conseguiu parar de sonhar.






2 comentários:

Rita disse...

Fico pensando que ela saiu pela tarde e como a Bela e ousou sonhos secretos há muito esquecidos...

DaniZide disse...

E nunca mais tomou café...