Naquele mesmo instante desejava muito não ter que passar as camisas de gola, mas também as queria passadas sem ter que contratar alguém para a função.
Contraditório, não?
Conseguiu assim perceber a oposição da qual são feitos todos os desejos e lembrou da camarada Meirelles em sua genial e disfarçadamente inocente obra " Ou isto ou aquilo".
Sua mente compulsiva, um pouco cansada das pilhas de camisas goladas, evocou ainda o provérbio tão clichê que ensina física sentimental ao relatar a impossibilidade de 2 proveitos ocuparem um mesmo saco.
Ah! Porque não, né?
Se cada ser humano é dotado usualmente de 5 sentidos não havia sentido algum não tirar proveito e prazer de cada um deles.
Desejosos que somos, tentamos sempre usufruir de todos numa mesma empreitada desejosa.
Seria essa a origem dos desejos proibidos: o não parcelamento dos sentidos?
Metaforicamente pensou sobre o bolo de chocolate que gostaria de comer e não podia.
Será que uma cheiradinha resolveria o desejo? Uma forma nova de resolver a compulsão, bem verdade, mas sem deixar de ocupar o cargo de solução.
Seria melhor assumí-lo como seu demônio pessoal e enfrentá-lo de forma bélica? Outro desfecho fora do convencional, porém igualmente útil. Exterminar o desejo é um modo de não mais desejá-lo. E se desejar, desculpe, mas ele não estará mais lá.
Considerou passar a mão por todo o bolo e ao invés de ter sua textura na língua, a teria nas mãos. Bem, uma ótima resposta à questão inicial. Seguindo por essa direção, carinhosamente esmigalharia o doce entre os dedos até que nada mais sobrasse para ser cobiçado posteriormente pela gula. E numa sequência quase poética, quem sabe esfregá-lo por todo o corpo e sujar-se como nos velhos tempos onde roupas limpas eram mera questão de minutos...
Outra belíssima opção seria a contemplação da tentação por horas a fio. Tê-la tão perto: quanta satisfação!
Mais uma possibilidade: doar o bolo desejado ao grupo de crianças que brincava na rua. Com toda a certeza extirpariam sua cobiça em poucos segundos. De modo convencional, claro.
Melhor ainda se o vendesse na pracinha, obtendo assim algum lucro. Está aí uma bela parceria entre desejo e desejador.
A pilha de camisas de gola havia diminuído bem, mas estava longe de acabar. Percebeu que suas distrações a fizeram queimar algumas delas.
Desejou não ter feito isso.
Desejava muito e o tempo todo, concluiu.
Havia contudo, passado a limpo (ou ao menos divagado a respeito) a existência dos desejos que não podem tomar forma e acabam por se transformar em tentações.
Ora! Se transformar é tomar uma nova forma, admitir somente a forma convencional da realização desejos é o que os condenam ao hall de desejos não possíveis.
Pensou melhor e rapidamente decidiu cortar fora as golas de algumas camisas queimadas pelo ferro de passar.
Dar-lhes nova forma resolveria a tristeza, a frustração e o ônus de próximas passagens de roupa.
4 comentários:
tão bonito como vc faz um jogo de montar com as palavras e as idéias. ler o seu texto é como olhar arquitetura. falei ao poeta sobre isso outro dia. te amo, bjs
Talvez eu seja arquiteta de palavras... te amo!
Dani minha querida! Fico pensando em quão bom é ser dono do próprio tempo! Que lindo texto, ficou um gostinho de "quero mais" Beijos Rita.
Rita amada, que bom vê-la por aqui. Bem, já que quer mais... diga ao povo que faço! bjs
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